Autismo em adultos e números alarmantes sobre suicídios
Blog do Eloilton Cajuhy – BEC

O Transtorno do Espectro Autista (TEA) em adultos, frequentemente subdiagnosticado e incompreendido, carrega um risco alarmante e pouco discutido: o de suicídio.
Segundo o Dr. Matheus Trilico, neurologista referência em TEA e TDAH em adultos, embora dados brasileiros específicos sejam escassos, a recorrência do tema em sua prática clínica reflete uma preocupante tendência global.
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Esta realidade ressalta a necessidade premente de uma compreensão mais aprofundada das complexidades enfrentadas por indivíduos autistas na vida adulta, um grupo historicamente negligenciado tanto na pesquisa quanto na provisão de serviços de saúde.
A realidade dos números: uma crise silenciosa
Os dados mais recentes do Centro de Controle e Prevenção de Doenças (CDC) revelam que adultos autistas apresentam taxas de suicídio até três vezes maiores que a população neurotípica.
Essa estatística é corroborada pelo Estudo sobre a Carga Global de Doenças de 2019, que já apontava o suicídio como uma das principais causas de morte prematura em pessoas com TEA. É crucial notar que esses números podem ser ainda maiores, dada a subnotificação e a dificuldade em classificar mortes por suicídio em indivíduos autistas, muitas vezes atribuídas a outras causas.
“Esses dados representam muito mais que estatísticas. São vidas que poderiam ter sido preservadas com intervenção adequada e oportuna”, alerta o Dr. Trilico, sublinhando a urgência de reconhecer essa disparidade como uma emergência de saúde pública que exige atenção imediata e estratégias de prevenção robustas.
Fatores de risco: por que a vulnerabilidade aumenta?
A maior vulnerabilidade de adultos autistas ao suicídio é multifatorial, envolvendo aspectos neurobiológicos, psicológicos e sociais que interagem de forma complexa e muitas vezes exaustiva.
- Alexitimia: Presente em até 85% dos autistas, a dificuldade em identificar e expressar emoções (alexitimia) não significa ausência de sentimentos, mas sim uma barreira na sua percepção e comunicação. Isso impede o reconhecimento precoce do próprio sofrimento e a comunicação eficaz de angústia a outros, atrasando a busca por ajuda e levando a sentimentos de sobrecarga e incompreensão. O indivíduo pode sentir uma angústia intensa, mas não conseguir nomeá-la ou expressá-la de forma que seja compreendida pelos outros.
- Comorbidades psiquiátricas: Cerca de 70% dos adultos autistas têm pelo menos uma comorbidade, como depressão, ansiedade, TOC e TDAH. Essas condições, muitas vezes atípicas em autistas (por exemplo, depressão manifestada como irritabilidade ou shutdown em vez de tristeza clássica; ansiedade exacerbada por sobrecarga sensorial), amplificam o risco suicida. O diagnóstico e tratamento dessas comorbidades são frequentemente desafiadores devido à apresentação atípica e à falta de profissionais familiarizados com o perfil autista.
- Desafios sensoriais e de função executiva: A hipersensibilidade ou hipossensibilidade sensorial (a sons, luzes, texturas) e as dificuldades em planejamento, organização e flexibilidade (função executiva) geram estresse crônico e uma sensação constante de sobrecarga. Isso pode levar a frustração, isolamento social (para evitar gatilhos sensoriais), e desesperança, contribuindo significativamente para pensamentos suicidas. A dificuldade em iniciar tarefas ou gerenciar o dia a dia pode criar um ciclo vicioso de falha e autocrítica.
- Isolamento social e falta de pertença: Muitos autistas enfrentam dificuldades em formar e manter conexões sociais significativas devido a diferenças na comunicação e interação, histórico de bullying ou rejeição. A solidão crônica e a sensação de não pertencer são fatores de risco universais para o suicídio, e são exacerbados na população autista.
- Experiências de trauma e vitimização: Indivíduos autistas são desproporcionalmente mais propensos a serem vítimas de bullying, abuso e outras formas de trauma. Essas experiências podem levar a transtorno de estresse pós-traumático (TEPT), baixa autoestima e uma visão negativa do mundo, aumentando a vulnerabilidade ao suicídio.
- Impacto do diagnóstico tardio: Viver anos sem um diagnóstico pode levar a sentimentos de “ser quebrado” ou “errado”, resultando em anos de autocrítica, tentativas frustradas de se encaixar e sofrimento silencioso, culminando em esgotamento e desesperança.
O impacto do masking e do burnout autista
Um dos maiores contribuintes para o sofrimento autista é o “masking” (camuflagem social), onde o indivíduo suprime suas características autistas para se adaptar às expectativas sociais neurotípicas.
“É como manter uma performance teatral constante e exaustiva, onde a pessoa autista tenta imitar comportamentos neurotípicos, suprimir humor ou forçar contato visual, mesmo que isso cause grande desconforto”, explica o Dr. Trilico.
O custo psicológico do masking é imenso, levando à exaustão, confusão de identidade, e uma sensação de inautenticidade.
Esse esforço contínuo e a sobrecarga sensorial e social levam ao “burnout autista” um estado de exaustão física, mental e emocional profunda, distinto de uma depressão clínica, mas que pode desencadeá-la ou agravá-la. O burnout autista se manifesta como:
- Perda de habilidades funcionais: Dificuldade em realizar tarefas diárias básicas, como higiene pessoal, alimentação, ou manter o emprego/estudos.
- Intensificação de humor ou colapsos: Aumento de comportamentos repetitivos (autoestimulação) como forma de enfrentamento, ou episódios de desregulação emocional intensa (colapsos) ou desligamento (shutdowns).
- Aumento da sensibilidade sensorial: O ambiente se torna ainda mais intolerável, com sons, luzes ou texturas que antes eram manejáveis, agora causando dor ou sobrecarga extrema.
- Isolamento extremo: Retirada completa de interações sociais, mesmo com pessoas próximas, e dificuldade em sair de casa.
O burnout autista, se não tratado, pode precipitar crises de saúde mental severas e aumentar drasticamente o risco suicida, pois a pessoa se sente completamente esgotada e sem recursos para continuar.
Sinais de alerta: o que observar?
O reconhecimento precoce exige um olhar especializado, pois os sinais podem ser atípicos e não se manifestar da mesma forma que em indivíduos neurotípicos.
Comportamentais:
- Isolamento social extremo: Retirada de atividades ou pessoas que antes eram importantes, mesmo que em pequena escala.
- Mudanças drásticas em interesses especiais: Perda de interesse em paixões que antes eram fontes de alegria e rotina, o que é um sinal de alerta significativo para autistas.
- Regressão funcional: Perda de habilidades diárias anteriormente dominadas, como dificuldade em se vestir, cozinhar ou ir ao trabalho/escola.
- Aumento de comportamentos repetitivos ou autolesivos: Intensificação de stimming (humor) como forma de coping (enfrentamento) desadaptativo, ou o início/aumento de autolesões como forma de lidar com a dor emocional.
Emocionais/Cognitivos:
- Expressões indiretas de desesperança: Frases como “não vejo sentido em continuar”, “eu sou um fardo”, “as coisas nunca vão melhorar”, ou a expressão de um desejo passivo de não acordar.
- Somatização: Queixas de dores físicas inexplicáveis (dores de cabeça, estômago) que são manifestações de angústia emocional não verbalizada.
- Aumento de meltdowns (colapsos) ou shutdowns (desligamentos): Episódios mais frequentes ou intensos de desregulação emocional (explosões de raiva, choro incontrolável) ou de “desligamento” (perda de fala, imobilidade, retirada total).
- Pensamentos rígidos e catastróficos: Dificuldade em ver alternativas ou soluções para problemas, com uma tendência a pensar em termos de “tudo ou nada” e a prever os piores cenários.
“Não esperem por uma verbalização explícita de ‘quero morrer’. Se há suspeita de risco, a avaliação profissional deve ser buscada imediatamente. É sempre melhor errar pelo excesso de cuidado quando vidas estão em risco. A observação de uma mudança significativa no comportamento habitual do indivíduo autista é um forte indicador de que algo não está bem”, adverte o Dr. Trilico.
A importância da ajuda especializada e neurodiversa
A intervenção precoce salva vidas. É crucial buscar profissionais com experiência em autismo adulto, que adotem uma perspectiva neurodiversa. Isso significa que o profissional compreende que as características autistas não são “sintomas” a serem curados, mas sim diferenças neurológicas que exigem acomodação e validação. Situações que exigem ajuda imediata incluem expressões de ideação suicida (direta ou indireta), planos de autolesão, comportamentos de despedida (como doação de bens ou isolamento extremo) ou mudanças súbitas e drásticas no comportamento que indiquem um nível severo de sofrimento.
A prevenção eficaz do suicídio em autistas requer uma abordagem multifacetada, que abranja o indivíduo, sua família e o ambiente social. “Não se trata de ‘curar’ o autismo, mas de desenvolver ferramentas que permitam ao indivíduo autista navegar o mundo de forma mais confortável, autêntica e segura”, afirma o Dr. Trilico.
Conclusão: um chamado à ação
De acordo com o neurologista, a alta taxa de suicídio em adultos autistas não é inevitável. É um problema de saúde pública que pode e deve ser abordado com estratégias baseadas em evidências, empatia e uma profunda compreensão da neurodiversidade. A sociedade, os profissionais de saúde, as famílias e os próprios indivíduos autistas têm um papel a desempenhar na criação de um ambiente mais seguro e acolhedor.
O Dr. Trilico conclui: “Cada vida perdida por suicídio representa uma falha coletiva em compreender e apoiar adequadamente a experiência autista adulta. Temos o conhecimento e as ferramentas necessárias para mudar essa realidade e o que precisamos agora é da vontade de agir de forma colaborativa, reduzindo o estigma e aumentando o acesso a cuidados especializados”, finaliza o neurologista.
O momento de agir é agora. Busquem ajuda especializada, mantenham-se informados e lembrem-se de que, com o suporte adequado e uma abordagem neurodiversa, a vida autista pode ser plena, significativa e segura.