*Por Rodrigo Wanderley

Há cerca de 8 anos escrevi que nem mesmo um soldado com um fuzil em cada esquina acabaria com a Guerra de Espadas. Por uma triste coincidência, exatos 3 dias e 10 horas, uma decisão interlocutória definia a Guerra de Espadas de Senhor do Bonfim como crime e fazia um controle difuso de constitucionalidade sobre uma lei de dois artigos que apenas dizia “torna a Guerra de Espadas Patrimônio Cultural Imaterial do município de Senhor do Bonfim e essa lei entra em vigor a partir da sua publicação”. Sem uma lei anterior que tipificasse e de forma criativa, ou no mínimo heterodoxa, estavam afirmando que a Câmara Municipal de Senhor do Bonfim legislava sobre material bélico e que a Guerra de Espadas era crime. Mesmo a R-105 definindo o que é material bélico, produto controlado e artefato pirotécnico. Mesmo o código penal definindo o que é crime. Ativismo? Não sei. Incoerência? Talvez. Injustiça? Por certo, sim!
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Criou-se um espetáculo triste, uma ópera traumática, ineficiente, ineficaz e simbolicamente aterradora, atroz. Mesmo sendo extremamente custosa, do ponto de vista financeiro, perdurou. O processo se destinava à Prefeitura. Ora, a Prefeitura realiza a manifestação? Não, não realiza. Mas assim o foi. E passou-se a afirmar que existia uma lei que determinava a proibição da queima, coisa que até o momento inexiste no ordenamento jurídico pátrio tal marco legal. E certamente não existirá.
Foram anos de muita dor. Os olhos lacrimejando se acostumaram, irresignados em acreditar o que viam, ou por efeitos das bombas de lacrimogênio. Ano após ano, um povo saia as ruas e insistia em afirmar que existiam e que aquela manifestação com a alcunha de Guerra de Espadas fazia parte da sua identidade, da sua cultura.
Quando falei que nem mesmo um soldado com fuzil em cada esquina acabaria com a Guerra de Espadas, afirmava, como ainda afirmo, que a força não acaba com o amor, e sigo dizendo isso. Não se trata de um amor platônico. O filósofo grego pensou em algo inalcançável, mas o amor do bonfinense, ou sua forma mais virulenta a paixão, permaneceu acessa. Cultura não se apaga. É inafastável o sentimento afetuoso que o São João tem na cosmologia e nos efeitos sobre os corpos dos bonfinenses, e a Guerra de Espadas sempre foi elemento basilar.
Proibi-la é matar na raiz, extirpar, massacrar um povo. É retirar o espaço dos Calumbis das ruas no dia 23. A sentença matou também os Calumbis, disso talvez não tenham ciência. Proibir a Guerra de Espadas é lançar projeteis de elastano contra o Caroá, como infelizmente, aconteceu. Proibir a Guerra de Espadas é ocupar a casa dos festeiros que por um século abriram suas casas para as rainhas entrarem, e num exercício de troca simbólica, dar licor, bolo de milho, e pela reciprocidade, ver as fagulhas.
Proibir a Guerra de Espadas é criar zonas de exclusão, proibir o ir e vir. Utilizar o Corpo de Bombeiros para apagar fogueiras. O São João de Bonfim é circular, de casa em casa, de porta em porta, nas ruas. Seja nas alvoradas, seja no trânsito do dia 23. É preciso salvar o fogo por isso. Porque o fogo é elemento indissociável da festa. E a Guerra de Espadas é a festa. Elemento distintivo singular. Único.
Mas que horas são? O tempo demonstrou que o amor não se extingue por decreto ou decisões imaturas (sim, o conceito de Decisão Interlocutória é essa primeira decisão, é a priori, aprioristicamente, imatura). Foram necessários 8 anos para, tateando no escuro da burocracia estatal, chegarmos aos elementos necessário para o agora. Durante anos percorremos corredores, gabinetes, assembleia, com seus ares impolutos e austeros, conversas, modulações. Diversas vezes fomos acusados de discutir apenas em junho. Ledo engano do acusador. É um caso complexo, que não cabe decisões açodadas, é preciso refletir, debater. O Estado Democrático de Direito é fundado no debate. No caso de colisão de direitos é preciso chegar em modulações que permitam o exercício dos direitos que colidem, se assim for possível. No caso em tela, sim, é possível.
A hora é de fazer história. Desenvolver as acomodações e modificações que o tempo exigiram a manifestação. Devolver o protagonismo de um povo que exercita sua identidade no dia 23 de junho, no solstício de inverno, nos abraços dos irmãos que emulam uma Guerra com arma brinquedo. A hora é de despenalizar a Manifestação Cultural de um povo. E tomar as medidas administrativas nos órgãos de Estado que são capazes de certificar. Devolver o aparato policial para o que de fato é crime. Ao meu ver, os custos com as operações de repressão à manifestação cultural (deslocamento, diárias e alimentação de efetivos de até 300 policiais, helicópteros, drones, companhia da Caatinga, Rondesp Norte, Batalhão de Choque, Batalhão de Cavalaria, balas de elastano, gás lacrimogênio, bombas de efeito moral), somas elevadas em 8 anos de uso, sejam fontes de recursos para financiar o enquadramento seguro, adequado, certificado, do artefato e dos locais de queima.
Considerando que as modulações esperadas podem produzir emprego e renda, além de arrecadação de tributos. Queremos nossos companheiros da Polícia Militar do nosso lado garantindo a proteção dos espadeiros. Esperamos devolver o brilho no olhar. Matar as saudades das noites de São João.
Sentar na mesa e encontrar soluções é uma virtude. Debater com altivez, coragem e pragmatismo a solução de um problema que perdura no tempo é desafiador, mas necessário. Dar dois passos atrás e, por vezes, reconhecer os erros não é pulsilame. Não se acaba com um povo por decreto ou por decisões monocráticas. É preciso ter coragem e envergadura moral singular para contrapor ideias e aparar arestas. A hora é agora. Muitos partiram sem ver esse momento. A pergunta é: Que horas elas voltam? Calma, o caminho é longo. Estamos caminhando. Por certo, obstáculos aparecerão. Mas só toma topada quem caminha.
Por estes, essas e outras, estamos salvando o fogo!

*Rodrigo Wanderley – Cientista Social e Antropólogo de formação. Espadeiro de nascença.