Hoje com 29 anos, vítima relata como a violência mudou sua vida e a luta para superar o trauma.
Por Thaís Espírito Santo, g1 Rio
Mayara Aline Braga tinha 12 anos quando um suposto carinho do pai dela a machucou pela primeira vez. Dali em diante, ela relata que foram 4 anos sofrendo constantes abusos sexuais. A violência só parou depois de engravidar dele, aos 16.
“Eu tive uma filha do meu próprio pai. Isso não é pequeno. Como se tem estrutura de ter um filho de um abuso e ainda criar ele com amor? Sem o apoio de ninguém, isso não é pequeno. Isso é grave”, conta a moça, hoje com 29 anos.
A gravidez na adolescência, por si só, é desafiadora. Mas foi a partir da gestação da filha que a adolescente, até então fragilizada e assustada, teve forças para enfrentar Marco Aurélio Leonel da Silva, seu pai.
Os anos se passaram, Mayara se casou e teve mais 3 filhos: 1 casal de gêmeos (hoje com 8 anos) e 1 menina (com 4 anos). Dentro de si, porém, guarda feridas que relutam para cicatrizar e memórias que nunca serão apagadas.
‘Achei que era normal’
Mayara foi morar com Marco Aurélio aos 10 anos no Jardim América, na Zona Norte do Rio, depois de ser expulsa da casa pela mãe — que era vítima de violência doméstica.
Na época, a área já era dominada pelo tráfico, e a convivência com as drogas, a violência e as operações policiais era rotineira.
“Depois que eu fiquei mocinha, depois da minha primeira menstruação, ele abusou de mim. Dos 12 aos 13, eu achava completamente normal o que o abusador fazia comigo. Ele dizia que o primeiro homem de uma menina era o pai, que era o pai que preparava a menina para outros homens”, relata Mayara.
O pai, além de muito agressivo, era viciado em drogas, conta ela: “Dos meus 12 aos 13 anos, eu permiti que meu pai abusasse de mim porque eu achei que era normal, porque meu pai me ensinou que era normal. Eu cresci com meu pai dizendo que aquilo estava certo. Se, dentro de mim, eu crescesse achando que aquilo era normal, talvez hoje eu fosse uma abusadora”.
Depois do nascimento da filha, ela chegou a ameaçar o pai para que ele não cometesse mais os abusos.
“Teve um dia que ele me deu uma surra muito forte, bateu a minha cabeça e me fez desmaiar. Nesse dia, eu prometi a ele que se ele fizesse mais algo comigo ou usasse drogas enquanto minha filha estava dentro de casa, eu ia dar queixa dele na boca de fumo. Dali em diante, ele nem me bateu mais.”
Gravidez marcada pela dor
A gravidez já é um momento de sensibilidade para as mulheres, mas Mayara foi exposta também à violência psicológica.
“Quando eu engravidei, ele trabalhou muito meu psicológico. Quando minha mãe me expulsou de casa, ela disse: ‘Você vai morar com seu pai para ver o quão bom ele é, você vai bater na porta da minha casa grávida de um traficante, com o olho roxo, e minha porta vai estar fechada porque nem um pacote de comida você vai ter!’”, relembra ela.
Segundo Mayara, o pai constantemente usava as falas da mãe para convencê-la de que a jovem estava desamparada no mundo. A mãe só soube da gestação quando ela já estava avançada, e só conheceu a neta aos 3 meses. Além da violência psicológica, o pai tentou gerar um aborto forçado em Mayara.
“Assim que eu engravidei, eu lembro que ele me deu um remédio e uma bucha para eu cheirar. Ele disse que eu estava com o útero sujo, que como ele era um homem formado, o que saía dele em mim me deixava suja. Ele me deu um chá e eu tive que ficar cheirando uma bucha em jejum por 24 horas. Eu sangrei por mais de um dia”, afirma a jovem.
Mayara conta que, como não deu certo, ele passou a dizer que a moça tinha “se aventurado na adolescência e que não sabia quem era o pai da criança”. O pré-natal só foi feito com quase 6 meses de gestação. Na época, o pai namorava a atual esposa, que tentou ajudar a adolescente.
Mayara explicou que o pai ordenou que contasse a seguinte história para a madrasta: “Olha, eu tô grávida e preciso que você me leve para fazer uma ultra, mas o meu pai não pode saber”.
“Ele deu o dinheiro da ultra e disse que queria saber o tamanho do feto porque ele estava com dinheiro para fazer um aborto. Na ultra, vi que já estava com 5 para 6 meses. Cheguei em casa e disse que não ia fazer um aborto”, relata Mayara.
Naquele dia, então, a jovem conta que foi espancada mais uma vez.
“Ele esperou a namorada ir embora e disse: ‘Você que está decidindo ter a criança. Eu estou tentando consertar um problema que você arrumou. Já que você quer ter essa criança, você vai sustentar porque do meu bolso não sai um real. Você vai ter que largar a escola e trabalhar porque essa criança não tem nem o que vestir, e não sou eu que vou botar o que comer pra ela’”, relembra.
Durante a gravidez, o pai tentou violentar a jovem novamente, diz Mayara: “Ele dizia muito que eu tinha que ter relação com alguém para abrir passagem porque corria o risco de a criança ficar presa em mim e eu e ela morrer no parto. E ele dizia que eu não podia ter relação com outra pessoa além do pai da criança, porque senão ela saía especial”.
“Infelizmente, minha filha tem o sobrenome dele. Está lá como avô, e ele é avô, mas é pai ao mesmo tempo”, completa ela.
A criança foi registrada pelo atual marido de Mayara, que criou e deu amor à menina como pai desde os primeiros meses. Mesmo assim, o nome do pai biológico, que é avô, consta nos documentos por causa do registro da mãe.
Rotina de violência
“Minhas amigas tinham medo dele”, foi uma das frases usadas por Mayara para definir como o pai era visto. Frequentemente, ela chegava machucada ou com hematomas na escola.
“Eu chegava com o pulso aberto, marcada. Uma vez, ele me pegou pelo cabelo e me deu uma surra da escola até em casa. Não é como se meus amigos não soubessem, mas eles tinham muito medo e também não sabiam assimilar o que estava acontecendo, eles eram crianças assim como eu”.
Uma das colegas de classe, uma vez, percebeu que o que acontecia não era normal.
“Ela dizia que não era certo meu pai abrir meu pulso porque eu não queria fazer café, que era o que eu dizia para ela. Realmente, se eu não fizesse o café, ele me batia. Mas se eu não quisesse fazer sexo com ele, ele me batia. Se eu negasse, ele também me batia. Eles notavam que ele era agressivo, então também tinham medo”.
Antes dos abusos, ele se comportava como um pai exemplar para a garota, segundo a filha. Mas ela cresceu vendo a mãe sofrer violência doméstica e ser agredida. Esse foi um dos fatores que mais geraram insegurança na adolescente nos anos em que ela era abusada — ela não se sentia amparada para contar a ninguém.
“O pior que um abusador pode fazer com você, além de te encostar, é trabalhar o seu psicológico. Eles dizem que você gostou, que você deixou, quando você não fez nada disso. Que a culpa é sua, quando a culpa não é sua”, destaca ela.