É urgente criar políticas de saúde pública para cuidar dos idosos
*Por Drauzio Varella

“Ônibus entrou na casa humilde e foi apanhar a velhinha de 42 anos”, dizia a manchete na primeira página do Jornal do Commercio de Manaus, em janeiro de 1904.
Não se considere ofendida, prezada leitora, essa era a média de expectativa de vida na Manaus do início do século 20.
Desde então, esse número quase duplicou no Brasil: no ano passado atingiu 76,6 anos, segundo o IBGE. Para os homens, 73,9 anos; para as mulheres, 79,9 anos. Apesar da disparidade, poucos têm consciência de que, se existe um sexo frágil, somos nós, não elas.
A primeira razão para esse salto numérico foi o desenvolvimento econômico: éramos um país muito pobre, assolado por endemias rurais, com altas taxas de mortalidade infantil, recém-saído da escravidão, que abandonara à própria sorte a população negra “libertada”.
A criação do SUS e os avanços da medicina foram decisivos: vacinas, antibióticos, pasteurização do leite, saneamento básico (limitado até hoje) e o soro caseiro.
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A introdução do soro caseiro foi considerada pela Organização Mundial da Saúde e pela revista médica The Lancet o procedimento que mais vidas salvou no mundo no decorrer do século 20. Aqui também: a Pastoral da Criança, conduzida pela doutora Zilda Arns e por dom Geraldo Agnello, teve papel decisivo na implantação do programa de popularização do soro caseiro, com grande impacto na redução da mortalidade infantil.
Quando eu nasci, na década de 1940, a mortalidade infantil era de quase 150 em cada 1.000 nascimentos. No ano passado, esse índice caiu para 12,3. Ainda assim, estamos longe dos 2,4 da Suécia e dos 4,1 da França.
Nos últimos anos, deixamos de ser um país de crianças, adolescentes e adultos jovens. Hoje, a faixa etária que mais cresce é a que passou dos 60 anos. Somos mais de 32 milhões.
O problema é que envelhecemos mal. De acordo com a Sociedade Brasileira de Cardiologia, de 60% a 65% das mulheres e dos homens chegam aos 60 anos com hipertensão arterial. Segundo a Sociedade Brasileira de Endocrinologia, há pelo menos 16 milhões de pessoas com diabetes, a maioria das quais nessa faixa etária.
Essas duas condições são as principais causas de infartos do miocárdio, AVCs e outras enfermidades cardiovasculares, insuficiência renal crônica, cegueira e amputações de membros, entre outros males que trazem sofrimento, encurtam a vida e elevam às alturas os custos da saúde.
É verdade que todos querem viver muito, mas não a qualquer preço. Ninguém quer passar seus últimos anos jogado numa cama, de fralda, com uma sonda no estômago, dando trabalho para familiares que ele nem reconhece mais. O Ministério da Saúde calcula que pelo menos 8,5% dos que chegam aos 60 anos apresentam algum grau de demência, número que certamente subestima o total.
Nenhum país está preparado para amparar essa multidão de pessoas com déficits cognitivos, debilitadas, incapazes de executar as tarefas mais comezinhas. Nem o Japão, país rico, em que a expectativa média está ao redor dos 85 anos.
Uma pessoa com demência exige atenção permanente para enfrentar um cortejo de complicações: confusão mental, insônia, fases de agressividade, transtornos de personalidade, comportamentos inadequados, desorientação, dificuldade progressiva de coordenação motora, entre outras.
Nessas condições, há demanda permanente de profissionais de várias áreas: fisioterapia, fonoaudiologia, terapia ocupacional, psicologia e psiquiatria, médicos, enfermeiras e cuidadores. Nem o SUS nem os planos de saúde estão estruturados para atender esses pacientes.
Sem contar com a ajuda do sistema de saúde, só resta às famílias enfrentar o problema por conta própria. Em geral, a responsabilidade é assumida por uma mulher, seja esposa, seja filha, que desiste da vida pessoal para atender às necessidades do outro.
Com o tempo, a acompanhante fica esgotada e sujeita a transtornos psiquiátricos que vão da ansiedade generalizada à depressão grave, quadro que alguns chamam de “síndrome da cuidadora”. Quando isso acontece, passamos a ter duas pessoas doentes na mesma casa.
Já está difícil encontrar uma família que não tenha parentes próximos com algum grau de demência. É urgente criar políticas de saúde pública para cuidar deles. Mesmo porque, se tivermos a sorte de não morrer cedo, o risco de nos tornarmos um deles será cada vez mais alto.
Drauzio Varella
Médico cancerologista, autor de “Estação Carandiru”













