Filme indicado ao Oscar tem as conhecidas virtudes e uma qualidade mágica: a sintonia com o espírito de uma época
*Por Marcos Augusto Gonçalves
O destino sorriu para “Ainda Estou Aqui” e saiu de braços dados com o filme de Walter Salles para uma viagem de sucesso pelo mundo. A história de Rubens Paiva, Eunice e seus filhos vem arrebatando espectadores e críticos em diferentes países com sua capacidade de entrelaçar a experiência daquela família brasileira com a memória política da ditadura militar e as assombrações do mundo em que vivemos, cada vez mais palpáveis e assustadoras.
Em sentido contrário a parte da tradição cinematográfica brasileira, o filme deixa a alegoria de lado e nos apresenta uma narrativa até certo ponto contida e sem estridência panfletária, que consegue falar com gente de línguas e fusos horários diversos.
Sim, o filme naturalmente tem repercussões distintas em territórios políticos distintos, mas não vemos propriamente uma polarização em cena. Politizada, liberal, de esquerda, a família não aparece como porta-voz do povo oprimido, do operário explorado, do camponês sem reforma agrária.
Ela representa ela mesma e os valores que compartilha, que são humanistas e civilizatórios, ligados a uma tradição e uma história de emancipação que também teve lugar no apedrejado Ocidente: liberdade de ir e vir, de opinar, de denunciar, de lutar por justiça, de viver sua vida sem a ameaça de um poder arbitrário que hipocritamente, em nome de proteger justamente alguns desses valores, os atropela de maneira sinistra.
A indicação para o Oscar, na sequência de outros prêmios, como o Globo de Ouro para a grande atuação de Fernanda Torres, prova que “Ainda Estou Aqui” reuniu virtudes certas na hora certa. Como ressaltou Fernanda Torres, o fato de termos um filme em língua portuguesa indicado para concorrer na categoria geral (além de melhor filme estrangeiro) é alguma coisa inimaginável que se torna realidade.
Já comentei em outro texto a observação da atriz sobre o Brasil ser uma espécie de “ilha continental” separada pelo idioma, e como essa situação se inscreve no nosso debate sobre identidade nacional e riqueza cultural. Furar esse isolamento, como vem ocorrendo em áreas antes pouco prováveis — a literatura de Machado e Clarice, por exemplo — é um motivo de alegria que “Ainda Estou Aqui” nos proporciona.
Não há, então, como torcer o nariz para o clima de Copa do Mundo em torno do Oscar. É um tipo de provincianismo na verdade cosmopolita e carnavalizado — e a cerimônia, diga-se, será num domingo momesco!
Sim, outros filmes e diretores brasileiros já receberam prêmios relevantes, mas o que acontece agora é diferente. Não estamos falando de obras de movimentos, de um grito de urgência terceiro-mundista ou de uma genialidade singular. Trata-se de um filme que fala linguagem global e tem os ingredientes que levam gente aos cinemas. Mais do que isso, acabou acertando numa coisa que não tem fórmula: a sintonia mágica com o “zeitgeist”, o espírito do tempo.
Que a obra tenha sido objeto de campanhas de marketing faz parte do jogo e apenas enaltece o grau de profissionalismo do projeto, tão necessário para o cinema brasileiro — como qualquer outro — conquistar plateias.
“Ainda Estou Aqui” foi um grande presente de seus realizadores para o Brasil e está sendo um grande presente do Brasil para o mundo. Viva!
Marcos Augusto Gonçalves
Editor da Ilustríssima, formado em administração de empresas com mestrado em comunicação pela UFRJ. Foi editor de Opinião da Folha