A descaracterização do São João nordestino: Mercantilização, proibições e o esvaziamento das tradições culturais

Por Darlan Orfeu

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Imagem: Meta IA

As festas juninas, especialmente o São João, constituem um dos pilares da identidade cultural do Nordeste brasileiro. Com raízes profundas nas tradições populares, essas celebrações envolvem práticas religiosas, musicais e comunitárias que atravessam gerações. No entanto, nas últimas décadas, esse patrimônio imaterial tem sofrido intensos processos de descaracterização, impulsionados por fatores como a mercantilização cultural, a padronização estética midiática e, mais recentemente, pela crescente criminalização e proibição de elementos tradicionais, como a guerra de espadas, os fogos de artifício e as fogueiras.

Um símbolo dessa descaracterização silenciosa pode ser visto no próprio adereço que representa o São João: o simples chapéu de palha. Tradicionalmente usado nas danças, nas quadrilhas e nos festejos, esse item rústico e artesanal tem sido, cada vez mais, substituído por chapéus de feltro sintético, feitos de poliéster, adornados com brilhos e formas pasteurizadas. Essa substituição estética, aparentemente inofensiva, revela muito sobre os caminhos do São João atual onde o imediatismo midiático, a cultura do visual vendável e a falta de comicidade simbólica e inteligente moldam a maneira como as novas gerações se apresentam e se relacionam com a festa.

Mais do que um acessório, esse novo chapéu ocupa simbolicamente o espaço da “cabeça” da juventude, assim como a música de apelo comercial ocupa seus ouvidos: ambos se instalam onde antes havia crítica, autonomia e reconhecimento cultural. Ao uniformizar esteticamente os corpos e silenciar sua diversidade simbólica, esses elementos contribuem para um São João menos questionador, mais plástico e domesticado pelas lógicas do consumo.

Esse contraste fica ainda mais evidente quando lembramos da música de Luiz Gonzaga — o Rei do Baião — que, com sua sanfona, voz firme e poesia crua, denunciava a seca, o sofrimento do sertanejo e a migração forçada rumo ao Sul em busca de trabalho. Canções como “Vozes da Seca”, “Assum Preto”, “A Triste Partida” e tantas outras não apenas animavam as festas, mas também educavam, provocavam, politizavam e humanizavam o drama de um povo. Hoje, no entanto, o que se ouve em muitos arraiais é o oposto: letras descartáveis, centradas no hedonismo superficial, que apagam o sofrimento coletivo e substituem a crítica social por frases de efeito coreografadas para as redes e para a sepultamento da criticidade.

A mercantilização e a indústria cultural

O São João contemporâneo, sobretudo nas grandes cidades, tem sido fortemente influenciado pela lógica de mercado. A indústria fonográfica, pautada pelo consumo massivo e pela espetacularização define as atrações dos eventos juninos com base em popularidade e retorno financeiro, relegando a segundo plano os artistas locais e tradicionais especialmente os sanfoneiros, mestres da música regional e guardiões do forró autêntico.

Esse processo leva à substituição de repertórios tradicionais por estilos musicais alheios ao contexto junino, como o sertanejo universitário, o eletrônico, o piseiro e o arrocha com linguagem pasteurizada. A festa, nesse cenário, se transforma em uma plataforma de entretenimento genérico, esvaziada de conteúdo simbólico, afetivo e territorial.

As proibições: sanitização e controle cultural

Paralelamente à mercantilização, outro fenômeno preocupa: a crescente proibição de elementos essenciais das festas juninas, como a guerra de espadas, os fogos de artifício e até mesmo as fogueiras em determinados municípios. Justificadas por argumentos (como segurança, saúde pública e poluição), essas proibições vêm ocorrendo de forma generalizada e pouco dialogada com as comunidades locais.

No estado da Paraíba, diversas cidades, inclusive a capital João Pessoa, têm adotado restrições rigorosas ao uso de fogos de artifício e à montagem de fogueiras durante o período junino, alegando riscos à saúde de crianças, idosos e pessoas com espectro autista. No Piauí, especialmente em Teresina e em cidades do interior, normas semelhantes foram implementadas com base em argumentos sanitários e ambientais. Estados como Pernambuco e Alagoas também vêm adotando medidas restritivas, muitas vezes sob decretos municipais que proíbem fogueiras em áreas urbanas e limitam o uso de fogos a artefatos “silenciosos”, o que altera profundamente o caráter sonoro e simbólico das celebrações.

A guerra de espadas, por exemplo, tradicionalmente praticada em cidades como Senhor do Bonfim (BA), é hoje criminalizada em muitas localidades do interior baiano, com seus praticantes perseguidos judicialmente. O mesmo se aplica a fogueiras e fogos, frequentemente restringidos por legislações estaduais e municipais durante o período junino.

Embora seja necessário considerar questões de segurança, o que se observa é uma sanitização das práticas culturais populares, onde elementos centrais do São João são excluídos ou tornados ilegais sem políticas compensatórias, diálogo comunitário ou medidas de salvaguarda cultural. Isso reflete um processo mais amplo de controle institucional sobre os corpos e as expressões populares, que contrasta com a permissividade seletiva conferida às grandes atrações comerciais.

O papel das prefeituras e o esvaziamento simbólico

As gestões municipais, muitas vezes em conivência com os interesses da indústria cultural, reproduzem essa lógica excludente. Ao mesmo tempo em que investem pesadamente em atrações de apelo nacional, deixam de fomentar políticas públicas que valorizem a música regional, os grupos de tradição, as quadrilhas juninas e os ofícios culturais populares.

Esse descompasso entre financiamento e fomento agrava o processo de esvaziamento simbólico do São João, ao substituir a vivência comunitária por um modelo de espetáculo midiático, efêmero e alheio à realidade local.
A descaracterização do São João nordestino é resultado de uma conjunção de fatores: mercantilização cultural, exclusão dos artistas locais, substituição dos repertórios tradicionais e proibição de práticas ancestrais como a guerra de espadas, as fogueiras e os fogos. Trata-se de um processo de deslegitimação simbólica das manifestações populares, travestido de modernização, segurança ou progresso.

Preservar o São João é resistir a essa homogeneização cultural. É afirmar o valor das expressões enraizadas no território, promover a escuta dos mestres da tradição e construir políticas públicas que respeitem a pluralidade e a força do patrimônio imaterial nordestino. Mais do que uma festa, o São João é uma memória viva e, como tal, precisa ser cuidada, transmitida e vivenciada em sua totalidade sem negar o acesso à nossa ancestralidade.

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