O luto pode servir de gatilho para uma série de mudanças de vida.
Por BBC News
Não há dúvidas de que testemunhar a morte de alguém querido é algo doloroso e que gera profundas mudanças pelo resto da vida. Mas a forma como cada um reage ao luto é bastante diferente — ainda que as pesquisas científicas revelem um certo padrão sobre o que acontece no cérebro durante esse processo.
A BBC News Brasil conversou com três pessoas que experimentaram perdas significativas nos últimos anos. Como elas reagiram? O que sentiram e viveram após ver alguém tão querido partir?
Confira a seguir como a morte transformou a vida desses três indivíduos e, apesar da dor envolvida, inspirou diferentes projetos e iniciativas.
‘A MORTE DE MINHA MÃE FOI UM GRANDE MOMENTO EM FAMÍLIA’
A psicóloga Luciana Flores Soares Reis, do Rio Grande do Sul, aceitou conversar com a BBC News Brasil menos de duas semanas depois da morte da mãe.
Na visão dela, no entanto, essa despedida se prolongou por quase dez anos, período em que a mãe passou por uma série de problemas de saúde relacionados ao avanço de uma doença neurodegenerativa.
Maria de Lourdes, a mãe de Reis, foi jornalista, fez mestrado em História e, aos 71 anos, se formou em Artes Plásticas na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Aliás, foi na época da formatura que ela começou a apresentar os sintomas mais evidentes da síndrome corticobasal, um quadro neurodegenerativo parecido com o Parkinson, marcado pelo declínio da função motora e pela perda progressiva dos movimentos do corpo.
“Essa doença, que tem uma progressão lenta, fez com que tivéssemos ao longo de dez anos uma espécie de luto antecipatório”, avalia Reis. “Aos poucos, precisamos nos despedir de algumas capacidades que minha mãe sempre teve, o que de certa maneira ajudou a lidar com o luto depois da morte dela”.
No final da vida, Maria de Lourdes não conseguia mais falar — e apenas se comunicava por meio de um sistema de piscadas ou pela expressão do olhar. “Minha mãe sempre foi uma pessoa de poucas palavras. E sem palavras ela se foi”.
Com o declínio das funções motoras, Maria de Lourdes passou a ter algumas dificuldades para deglutir. Nesses momentos, ela sofria com vômitos, em que parte da comida era aspirada e gerava quadros de pneumonia. Ela precisou ser internada para lidar com essas complicações, mas sempre se recuperava e retornava para casa.
“Minha mãe não sofria um episódio desses há quatro meses. Até que na madrugada de uma quarta-feira de junho recebi uma ligação”. Maria de Lourdes havia vomitado — e a equipe de saúde que a acompanhava logo iniciou os protocolos de recuperação, que envolvem restringir o consumo de alimentos ou líquidos, para ver se ela melhorava. “Mas desta vez ela não melhorou”.
“Começamos a observar uma diminuição dos batimentos cardíacos e da respiração, o que indicava que minha mãe havia entrado na etapa final da vida, em um processo ativo de morte”.
Essa constatação tão precisa só foi possível porque, ao acompanhar tão de perto todos os percalços de saúde de Maria de Lourdes por quase uma década, Reis decidiu mergulhar de cabeça numa área que só começou a ganhar mais destaque no Brasil nos últimos anos: os cuidados paliativos.
“Me formei em psicologia há 34 anos e, neste momento, quase aos 60 anos de idade, provavelmente no último terço de minha vida, estou muito interessada em me tornar uma psicóloga paliativista”.
Reis detalha que, por escolha própria, os pais dela decidiram seguir morando sozinhos, no lar deles, em vez de ficar na casa de uma das filhas — a psicóloga tem outras duas irmãs — ou num retiro para idosos. A família instalou câmeras e contratou auxiliares de enfermagem para dar apoio ao casal, especialmente para Maria de Lourdes.
“Quando minha mãe entrou num processo ativo de morte, tínhamos dois caminhos: interná-la num hospital ou mantê-la em casa”, diz ela. “Como já havíamos conversado sobre isso com toda a família, decidimos pela segunda opção, com todo o suporte de medicações e de enfermagem necessário”.
“Nada foi acelerado. Ela se foi no tempo devido”. Reis afirma que, nos dias que se seguiram depois daquela ligação na madrugada de uma quarta-feira de junho, os familiares foram aos poucos se mudando provisoriamente para a casa de Maria de Lourdes.
“E vivemos cenas muito lindas ali, enquanto dormíamos amontoados em colchões na sala. As três filhas, os quatro netos, meu pai, meu marido, todos revezamos para ficar lá”. “Foi um grande momento em família, em que todos tiveram a oportunidade de conversar com a mãe e dizer a ela o que tinham vontade”.
“Até uma irmã de minha mãe, que mora em São Paulo, conseguiu visitá-la. Como o aeroporto está fechado por causa das enchentes no Rio Grande do Sul, minha prima precisou dirigir uma noite inteira para chegar em Porto Alegre”.
Um dos netos encontrou na internet as marchinhas de carnaval que Maria de Lourdes e o marido ouviram quando se conheceram pela primeira vez, quando ela tinha 15 anos. Também surgiu a ideia de pegar duas folhas em branco e fazer uma arte coletiva em família, já que Maria de Lourdes tinha um interesse especial por essa área.
“Todos nós pintamos alguma coisa para ela. Até meu pai, que está com 86 anos, participou”. “Meu filho mais velho pegou a mão da avó e fez alguns rabiscos com ela”. O resultado final da experiência artística foram duas pinturas que, nas palavras de Reis, ficarão como uma grande lembrança para toda a família.
Na noite de outra quarta-feira, dia 26 de junho, a respiração de Maria de Lourdes começou a ficar ainda mais devagar. “Foi como se a chama de uma vela se apagasse aos poucos”. “Minha mãe morreu em paz, embalada de muito amor e carinho, de mãos dadas com a família”.
Passados alguns dias da morte, a psicóloga confessa um certo estranhamento diante do que sente. “Às vezes, acho que estou bem demais para o momento que vivi”, diz, com a voz embargada. “Mas, ao mesmo tempo, foram tantos anos de despedidas que esse final amoroso me ajudou a ficar melhor do que poderia imaginar”. “Lógico que tenho momentos emotivos, mas eles são mais de saudade do que de tristeza”, classifica ela.
A psicóloga pretende seguir os estudos e os projetos sobre os cuidados paliativos, para virar uma especialista nessa área. “Quero que outras pessoas possam ter acesso a um processo de morte tão amoroso, tranquilo e humano quanto eu e minha família pudemos vivenciar”. “Talvez a missão que minha mãe deixou, e eu tenho vontade de seguir, é fomentar essa possibilidade humanizada de nos despedirmos das pessoas que amamos”.
‘O LUTO ME FEZ VER AMOR ONDE O MUNDO SÓ ENXERGA DOR’
Rafael Stein, de São Paulo, se apresenta como pai da Maria Clara e do Francisco — e afirma que a paternidade é o que o define hoje. A história de vida dele se divide em duas partes: o antes e o depois do diagnóstico de câncer de mama de sua esposa, Micaela.
“Há cinco anos, Micaela faleceu depois de quase dois anos de tratamento contra um tumor bastante agressivo”, conta ele. “Até então, entendia que meu papel como homem e como pai era prover. Eu trabalhava para cumprir essa missão de proporcionar coisas para minha família”.
Após o diagnóstico, Stein percebeu que esses objetivos não seriam suficientes para lidar com o desafio que se avizinhava. “Eu tomei a decisão de estar mais presente, para cuidar da minha esposa e dos meus filhos. Isso mudou completamente a minha vida”. “Percebi que nós, homens, não somos educados para ter esse cuidado, que é algo que as mulheres fazem normalmente, no dia a dia”.
Stein entende que a morte já deu as caras logo após o diagnóstico. “Quando você recebe a notícia, a primeira sensação é que a pessoa já está morrendo. Afinal, todo aquele futuro que você tinha planejado deixa de existir”. “Nós estávamos prestes a completar dez anos de casamento e tínhamos o sonho de ir para Las Vegas, nos EUA, para fazer uma nova cerimônia, com direito a cover de Elvis Presley e tudo”, lembra ele. “E essa morte antecipada não se limitou à Micaela. Eu morri um pouco junto com ela, pois não tinha ideia de que homem eu havia me tornado a partir desse diagnóstico”.
Stein destaca que os dois anos de tratamento foram “doloridos”, mas permitiram construir algo novo como casal. “Nesses dois anos, passei a ficar em casa, acordar mais cedo para preparar o café da manhã, colocar as crianças para dormir, dar banho, cuidar… E hoje entendo que esses foram os dois melhores anos do nosso casamento”. “Nós criamos uma conexão que nem sabia possível entre um homem e uma mulher. Isso mudou a minha definição de amor”.
Conforme a doença progredia e o tratamento deixava de surtir resultado, a família criou um espaço para falar sobre a morte e todos os desejos e vontades de Micaela. Stein, por exemplo, pediu ao hospital que o avisasse quando a esposa fosse sedada pela última vez, para que pudesse estar com ela nesse momento. “Cheguei para a visita e ela estava com uma alergia, pois tinha acabado de receber morfina. Eu disse que estava tudo bem, coloquei a mão no rosto dela e a vi adormecer”. “Lembro de pensar: e agora? Como vai ser daqui em diante?”, questiona ele.
Aos poucos, a respiração e os batimentos cardíacos de Micaela diminuíram, até pararem completamente. “Na hora em que ela morreu, me sentia anestesiado, não havia desespero. Já tinha pedido ajuda a meus pais com a parte burocrática. Voltei para casa para pegar a roupa que ela queria usar”.
O casal também havia decidido que as crianças não participariam do velório. “Depois do enterro, voltei para casa sozinho e precisava dar a notícia para elas”. “Falei primeiro com a Maria, que é a mais velha. Sentei para conversar e contei toda uma história sobre a mamãe estar no hospital, como nós escolhemos o nome dela… Ela me perguntou: ‘A mamãe morreu?'”, diz ele, sobre a filha que tinha cerca de 6 anos na época.
“Eu disse que sim, e começamos a chorar. Nessa hora, combinei com ela que tudo bem chorar e, se eu sentisse saudades, iria conversar com ela. Se ela sentisse saudades, também poderia vir falar comigo”. “Não sei quantas vezes a Maria me acolheu”. “Logo depois, a própria Maria foi conversar com o Francisco, que tinha dois anos. Ela repetiu a mesma história que eu havia contado e disse que ele poderia chorar e conversar”.
No dia seguinte, Stein sentiu o choque de realidade sobre o que realmente significa cuidar dos outros. “Fui para a cozinha e pensei: onde está a mamadeira? Que roupas eu levo para as crianças durante uma viagem? Quantas calcinhas minha filha tem? Foi desesperador, porque precisei assumir um protagonismo que nunca foi meu. Quem cuidava da família era minha esposa”.
Poucas horas depois, Stein preparou diversas coisas para o almoço — mas as crianças não comeram nada. “Eu chorei pra caramba, porque achei que não conseguiria alimentar meus próprios filhos”. Ele decidiu então deixar de lado a empresa da qual era sócio para focar exclusivamente nos cuidados da Maria e do Francisco.
“E eu enfrentei muitas resistências. A expectativa era que eu relegasse a criação dos meus filhos às avós”. “Era como se o tempo todo a sociedade dissesse que eu não seria capaz de prover esses cuidados”. Stein conta que, durante o velório, chegou a ouvir frases absurdas. “Umas três ou quatro pessoas me disseram que eu era jovem e bonito, então logo arrumaria uma outra pessoa”.
Ele também nota que todos os amigos se afastaram. “Eu só conseguia pensar e falar sobre a morte da minha esposa e os cuidados com meus filhos, e ninguém queria conversar a respeito”. Com o passar dos dias, surgiram novos desafios. “Tinha que levar minha filha ao balé. Mas como se faz um coque?”, diz.
“O luto que senti não envolvia apenas a perda de minha esposa. Mas era o luto do homem que eu era, dos amigos que foram embora, do papel social que deixei de cumprir… Essas várias questões afetaram minha identidade e me fizeram questionar que homem me tornei diante de tudo isso”.
Stein aprendeu aos poucos todos os detalhes que envolvem o ato de cuidar de alguém. Ele também se envolveu numa série de projetos e iniciativas relacionadas ao processo de luto. Ainda durante o tratamento do câncer, quando a doença havia avançado, uma enfermeira sugeriu ao casal que Micaela começasse a escrever cartas para a filha, pois não estaria aqui para acompanhar a adolescência de Maria. Surgiu assim o blog “Cartas para Maria”, em que Stein escreve e publica textos para que os filhos leiam no futuro.
Ele também integra o projeto “Luto do Homem”, que acolhe indivíduos que perderam alguém importante, e participou de um episódio da primeira temporada da série Queer Eye: Brasil, disponível na Netflix.
Passados cinco anos da morte de Micaela, Stein começou recentemente um novo relacionamento. Ele hoje compartilha com orgulho um episódio que atesta como ele desenvolveu a capacidade de cuidar. “Há pouco tempo, minha filha ‘virou mocinha’ e menstruou pela primeira vez. Diversas mulheres queriam falar com ela sobre isso, mas eu estava preparado. Conversei com a Maria e nunca me senti tão pai dela”. “Agora já entrou na rotina a necessidade de comprar absorventes ou lidar com as cólicas”, complementa ele.
Questionado sobre o que toda a experiência dos últimos anos significou, Stein acredita que se transformou em outra pessoa. “O luto me fez ver amor onde o mundo só enxerga dor”. “E eu gosto muito mais do Rafael que sou hoje. Meu desejo é que a Micaela pudesse conhecer essa minha versão atual. Mas ironicamente só me tornei isso por todo o processo que precisei enfrentar”. “Mas ela continua viva nas pessoas com quem hoje tenho contato. Só faço tudo isso por causa dela”. “De certa maneira, sinto que essa também é uma forma de honrar a vida da Micaela”, conclui ele.
‘COLOQUEI MEU LUTO A SERVIÇO PÚBLICO’
Em 2012, a psicóloga Claudia Petlik Fischer, de São Paulo, passou por uma verdadeira história de terror. “Eu estava no carro com a minha filha Ana, de quatro anos, e sofremos um acidente ao entrar em casa”, conta ela. “Até hoje não sei exatamente o que aconteceu, se foi alguma falha no portão… Mas a Ana bateu a cabeça e teve um traumatismo craniano”. “Eu estava naquele cenário de horror, comecei a gritar por ajuda e fomos ao hospital, mas na hora já sabia que não tinha mais jeito”.
Fischer diz que a forma como ela lidou com um episódio tão terrível foi influenciada por dois fatores. De um lado, ela começou a ler tudo sobre o luto, para tentar entender o que estava acontecendo com si mesma. A psicóloga também criou um grupo sobre mães enlutadas, para que elas pudessem compartilhar experiências de como conseguiram sobreviver.
De outro, uma frase dita por um rabino serviu de inspiração para ela, que vem de família judaica. “Nós não somos religiosos, mas numa hora dessas aceitamos todo tipo de ajuda. Logo após o acidente, ouvimos de um rabino que deveríamos fazer coisas boas em nome da Ana”. “Nós tínhamos uma viagem marcada para Israel, onde havíamos criado contato com um centro de convivência árabe-judaico-cristã, cujo objetivo é promover atividades para crianças e fomentar a paz”. “Resolvemos doar um valor em nome da nossa filha para custear parte da construção de uma biblioteca ali”.
De volta ao Brasil, a família também entregou quase uma dezena de parquinhos adaptados para crianças com deficiência em algumas cidades brasileiras. Por fim, Fischer e o marido criaram em meados de 2016 a ONG “Pais em Luto”, que oferece apoio psicológico e psiquiátrico para famílias de baixa renda que perderam um filho e não têm condições de pagar por esse serviço. Atualmente, a iniciativa atende 69 pacientes e conta com uma equipe de 53 terapeutas, 16 supervisores e oito psiquiatras.
Mas os responsáveis pela ONG entendem que é possível expandir ainda mais o serviço e buscam firmar parcerias com outros projetos — como grupos que acompanham crianças em tratamento contra o câncer, por exemplo — para oferecer apoio a mais pessoas.
“Durante esse tempo, eu trabalhei muito para colocar meu luto a serviço público”, diz Fischer. Para ela, tudo isso só reforçou a importância da vida em comunidade. “No nosso processo de luto, nós conseguimos muita ajuda, mas muito pelo fato de podermos pagar por isso”.
Fischer também se inspira na biografia de um avô, que sobreviveu ao Holocausto. “Sempre baseei minha vida na história dele, que me ensinou que sou capaz de sobreviver a qualquer coisa”. “Para mim, a sobrevivência depois de um caso como o que vivi está muito relacionada à interdependência, ao suporte social, ao apoio que recebemos”. “E espero construir pontes e ajudar outras pessoas a seguir adiante”, diz. “Afinal, ninguém consegue passar por uma dor tão grande se permanecer sozinho”.